domingo, fevereiro 11, 2007

[SEM PALAVRAS!]

SEM limites para a barbárie

O suplício público de um menino de 6 anos no Rio mostra que o Brasil está na sala de emergência de uma tragédia social em que o bandido decide quem vive e quem morre.

VIDA ROUBADA POR MONSTROS

Policiais observam (acima, à dir.) o corpo do menino João Hélio (no detalhe, à esq.).
Os autores do crime, um menor e um rapaz de 18 anos (abaixo), foram presos no dia seguinte.

Na quarta-feira passada, a dona-de-casa carioca Rosa Vieites se preparava para encerrar um dia como tantos outros. Pouco depois das 9 horas da noite, deixou o centro espírita que costuma freqüentar em Bento Ribeiro, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e entrou no carro com seus dois filhos, Aline, de 13 anos, e João Hélio, de 6, e uma amiga. Logo a família estaria toda reunida, segundo seus planos. Hélcio, seu marido, passara a tarde na casa nova que a família acabara de comprar, acompanhando a reforma, e iria encontrá-los para o jantar. Poucos quarteirões adiante, ao parar num sinal de trânsito, o carro em que estavam foi abordado por dois bandidos armados, que ordenaram que todos descessem. Começou, então, o pior drama que uma mãe pode viver – e uma trágica histórica que tirou a respiração de todos os brasileiros. Rosa, Aline e a quarta passageira, que viajava no banco do carona, saíram do carro. Mas o pequeno João, que estava no banco de trás e usava cinto de segurança, demorou um pouco. A mãe abriu a porta traseira e tentou ajudá-lo. Não deu tempo. Os bandidos entraram no carro e partiram em alta velocidade levando o garoto dependurado, preso pela barriga. Rosa gritou e saiu correndo atrás do veículo, mas só viu o filho ir embora, arrastado pelo chão.

Chega de explicações. Todo fenômeno de degradação social tem explicação. A queda de Roma, a ascensão de Adolf Hitler, a proliferação do mal bolchevique pelo mundo, a destruição das cidades brasileiras pelos criminosos e seus asseclas, simpatizantes – ou simplesmente cegos – na intelectualidade, na polícia e na política. O martírio público do menino João Hélio está destravando a língua de dezenas de explicadores. São os mesmos que passaram a mão na cabeça dos "meus guris" que desciam ao asfalto para subtrair um pouco do muito que os ricos tinham e, assim, sustentar a mãe no morro. Chega de romancear o criminoso, de culpar abstrações como a "violência", o "neoliberalismo", o "descaso da classe média"...

O que se passou depois foi uma cena difícil de imaginar, mesmo nos piores filmes de terror – aliás, nenhum roteirista ousou escrever uma cena daquela. Um crime de tamanha crueldade tem de ser encarado como a gota d'água para mudar o combate à violência no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. João Hélio foi arrastado por 7 quilômetros em ruas movimentadas de quatro bairros da região. Um motoqueiro que vinha atrás, que pensou tratar-se de um acidente, tentou alcançar o veículo para avisar que havia uma criança próxima à roda. "Na primeira curva, a cabeça bateu na proteção da calçada, e o sangue espirrou na minha roupa. Comecei a gritar e buzinar, mas vi que a criança já estava morta. Quando consegui chegar até o carro, um dos ocupantes pôs a arma na minha cara e me mandou ir embora", diz a testemunha.

Para evitar a todo custo pagar o preço de enfrentar a bandidagem e se manter na civilização, o Brasil está aceitando pagar o preço da volta à barbárie. O mais desalentador é constatar que o pequeno João Hélio chegou ao suplício em vão. Nada vai acontecer com os criminosos que o desmembraram em público e logo eles e outros estarão nas ruas predando os meninos-João. Os explicadores continuarão suas ladainhas, seus seminários, suas viagens para conhecer cidades que venceram o crime, suas reformas para dar resultados daqui a um século, suas visões idílicas de que favelas são soluções... No que diz respeito ao crime, o Brasil não está na UTI... está na sala de emergência. A decisão de quem vive e quem morre nessa sala, infelizmente, está nas mãos dos bandidos.

Pessoas que viram a cena também entraram em desespero enquanto os bandidos faziam ziguezague com o carro, tentando se livrar do corpo. Em algumas das treze ruas pelas quais João foi arrastado, ainda era possível ver rastros de sangue e massa encefálica pelo chão no dia seguinte. Os bandidos rodaram por dez minutos e depois abandonaram o veículo numa rua deserta. O garoto, ainda atado ao cinto, não tinha mais a cabeça, os joelhos nem os dedos das mãos. "Estou acostumado a ver cenas violentas. Mas foi uma coisa bárbara, não tive coragem de tirar o plástico para ver o garoto", diz o delegado Hércules do Nascimento, responsável pelo caso. O secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, e o comandante-geral da PM, coronel Ubiratan Guedes, não contiveram as lágrimas no enterro do menino. Um morador que reconheceu os bandidos conta que um deles saiu do carro, viu o corpo, depois vasculhou os objetos de valor dentro do veículo e desapareceu com o comparsa por um beco escuro. Eles não queriam o carro, apenas os pertences da família, o que confirma o assustador nível de banalização da violência nos grandes centros urbanos do Brasil.

Do blog do jornalista Reinaldo Azevedo, em VEJA on-line (http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo/): o menino João é o guri dos sem-Chico Buarque. O "menor", bem maior do que o menino João, cujo corpo ele ajudou a espalhar pelas avenidas do Rio, vai ficar três anos internado. E depois será solto entre os meninos-João, por quem não se rezam missas de apelo social. Resta só a dor da família: privada, sem importância, sem-ONG, "sem ar, sem luz, sem razão

FAMÍLIA DESTRUÍDA

Parentes de João Hélio se desesperam durante o enterro do menino. A mãe, Rosa (à esq.), tentou tirá-lo do carro, mas não conseguiu. A irmã, Aline (no centro), a quem o menino era apegado, desabafou quando o caixão baixou: "Quero ouvir a vozinha dele"


João Hélio faria 7 anos em março, cursava o primeiro ano primário num colégio particular, torcia pelo Botafogo e estava feliz porque iria ganhar um quarto novo, pintado de verde. Alegre e muito agitado, fazia aulas de natação e futebol. Todos os dias Rosa o levava de carro à escola e o buscava. Em homenagem à mãe, João fez um desenho que ficou afixado no mural da sala e dizia: "Eu gosto dela". O apego à irmã, de 13 anos, também era grande. No dia do enterro, Aline desesperou-se ao ver o pequeno caixão. "Eu quero meu bebê de volta. Quero meu irmão de volta, quero ouvir a vozinha dele de novo", gritava.

No dia seguinte ao crime, a polícia apresentou os responsáveis por essa tragédia que destruiu mais uma família da classe média carioca. Diego e E., menor de idade, sem antecedentes criminais. Segundo testemunhas, já era o quinto carro que a dupla abandonava no mesmo local. Com sangue-frio, os dois confessaram o assassinato e contaram detalhes do crime, que pode ter tido a participação de mais dois bandidos. Os pais de E., que têm outros quatro filhos, compareceram à delegacia. O pai não acreditava que seu filho pudesse ser um dos bandidos. Às 10 horas da noite, minutos após o roubo, os dois estavam na sua casa, onde jantaram sem demonstrar nenhum tipo de alteração. "Ele não precisava disso. Estava estudando e ganhava dinheiro lavando carros", afirma. "Eu sabia que meu filho andava com más companhias, mas nunca imaginei que pudesse fazer uma coisa dessas.

"Simbolicamente, a culpa é de quem morre. Alguns jornalistas ficaram um tanto revoltados com a polícia, que obrigou os bandidos a mostrar o rosto. Terrível ameaça à privacidade. Era só o que faltava: trucidar o menino João e ainda ser obrigado a expor a cara... Que país é este? Já não se pode mais nem arrastar uma criança pelas ruas em um automóvel e permanecer no anonimato?"

O crime precisa ser enfrentado como tal: uma combinação de pressões psicológicas, sociais, urbanas e familiares que está gerando pavor paralisante no país.

É vital escapar da paralisia.

Podem-se debater as forças da natureza enquanto se assiste à aproximação de um tsunami. Mas isso é inútil, perigoso e irracional. É preciso agir, fazer alguma coisa que estanque os efeitos destruidores da ação dos criminosos. Diz o sociólogo Cláudio Beato: "Ninguém pensa em resolver os problemas emergenciais de saúde, uma epidemia, por exemplo, investindo em educação. A segurança pública também requer medidas específicas – e urgentes".

VEJA ouviu de especialistas o que precisa e pode ser feito já:

• Limitar o horário de funcionamento de bares. Pesquisa feita em 2002 pela prefeitura de Diadema, uma das cidades mais violentas da Grande São Paulo, mostrou que 60% dos homicídios do município aconteciam a 100 metros de um bar. Ao fixar em 23 horas o horário-limite de funcionamento dos bares, a cidade conseguiu, em cinco anos, reduzir em 68% sua taxa de homicídios.

• Diminuir benefícios de presos como a redução do cumprimento da pena no regime fechado, por meio de progressão. "Hoje, até os autores de crimes hediondos são beneficiados com passagem do regime fechado para o semi-aberto após o cumprimento de somente um sexto da pena", diz o promotor de Justiça das Execuções Criminais de São Paulo Marcos Barreto.

• Suspender o benefício dos indultos (de Natal, Dia das Mães...) para criminosos reincidentes ou condenados por crimes violentos. O cientista social e professor da Universidade de Brasília Antônio Testa lembra que a freqüência com que os indultos são concedidos hoje, além de aumentar o risco a que a população está exposta, obriga o Estado a dispor de mais policiais na rua e gera desvio de funções.

• Suspender o limite para a internação de adolescentes infratores em centros de ressocialização. Hoje, eles só podem ficar internados até os 18 anos. "Só deveriam poder deixar os centros aqueles adolescentes que estivessem realmente ressocializados. E isso poderia durar três, quatro ou dez anos", afirma Testa.

• Criar uma rede multidisciplinar de assistência para jovens que começam a se envolver com a criminalidade, praticando pequenos atos de vandalismo ou participando de brigas de rua, por exemplo. "Nenhum jovem vira assassino da noite para o dia", afirma o sociólogo Cláudio Beato. "Uma rede de professores, psicólogos e assistentes sociais treinados pode atuar nas escolas e comunidades, dando suporte e orientação ao jovem ainda nessa etapa do processo", diz.

• Priorizar o policiamento comunitário. "O policial comunitário ganha a confiança dos moradores, é mais bem informado sobre a criminalidade no bairro e, portanto, consegue agir com mais eficácia", afirma o sociólogo Beato. No bairro Jardim Ângela, considerado uma das regiões mais violentas de São Paulo, a adoção da medida ajudou a reduzir o número de homicídios em 57% entre 2001 e 2005.

• Criar varas especiais que possibilitem o julgamento mais ágil de policiais acusados de corrupção e outros crimes: "Um agente suspeito que permanece trabalhando, enquanto aguarda julgamento por um longo período, contribui para aumentar a sensação de impunidade e afastar a polícia da sociedade", afirma Ignacio Cano, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Que se faça o que tem de ser feito já para conter a hemorragia social provocada pelo crime. Ou, em breve, estaremos chorando outro João Hélio.


Créditos da matéria para a revista Veja


"Não exagero em ocupar todo o espaço do blog com este POST. Acontece que o espaço que deveria estar ocupando a cabeça de nossos governantes em fazer algo pelo povo infelizmente está vazio. Os cabeças ocas do governo são sim, os responsáveis pela crise de segurança nas grandes cidades. São culpados por omissão, por indiferença por simples burocracia. Blá blá blá! Agora o que está em alta é o carnaval. Ninguém pensa em mais nada a não ser o desfile de carnaval. Quanto mais musical e festivo o povo mais indiferente e passivo ele é. Vide nossa realidade. Um acontecimento deste sim (a morte bárbara de João Hélio), deveria ser parar e comover o país. A mídia ao invés de publicar acerca do violência, não, tapa nossa televisão de bundas desnudas e belas mulatas a dançar. Ao invés de nos indignarmos com a nossa realidade gritamos skindô-skindô aos quatro ventos, numa fuga de nossas responsabilidades. Afinal. Vou até parar de escrever e deixar tudo o que tenho de fazer para depois do carnaval."


Como o colega Danilo do MPTubo, também coloco este blog em luto!



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Um comentário:

Anônimo disse...

Não conhecia este caso...fiquei impressionado, apesar de lidar com situações também terriveis...isto ultrapassa tudo....

 
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